Berfares: o voto de protesto
Uma carroça para em frente ao escritório político e de advocacia do deputado estadual José Marcondes Pereira (MDB) na rua Dr. Rubião Júnior, no centro da cidade de São José dos Campos, em meados de 1967, no início da noite. Dela desce um carroceiro, em traje de trabalho. Tira o chapéu e adentra à sala de espera, onde Marcondes atendia um grupo de líderes sindicais, estudantis e comunitários que estavam reivindicando uma legenda de candidato a vereador para o ex-vereador Mário Scholz.
Todos voltam sua atenção para o carroceiro que pergunta quem era o Dr. Marcondes Pereira. Apresenta-se como Berfares Souza Oliveira. E numa linguagem arrastada, evidenciando sua origem piraquara (habitante das margens do rio Paraíba do Sul), pede informações de como ele poderia ser candidato a vereador nas eleições de 15 de novembro. Marcondes ouve e responde de pronto: “É só você me trazer aqui um abaixo-assinado com duas mil assinaturas de eleitores da cidade! E com o número do título de eleitor!” O homem simples escuta atentamente, agradece, faz meia volta e sai da sala. Subindo na carroça, chicoteia o cavalo e segue o seu caminho.
O deputado estadual do MDB volta-se aos presentes e afirma como se estivesse respondendo uma pergunta que estava na cabeça de todos: “Quase todo dia aparece alguém aqui querendo ser candidato a vereador! Eu pedi o abaixo-assinado, com duas mil assinaturas porque assim, ele não volta mais!”
Mas, não é que duas ou três semanas depois a mesma carroça pára em frente ao escritório da Rubião Júnior e o mesmo carroceiro, Berfares Souza Oliveira, desce com um monte de folhas de papel almaço nas mãos procurando pelo Dr. Marcondes: “Aqui está Dr. Marcondes. O senhor pediu duas mil assinaturas? Aqui estão! E com o número do título eleitoral!”
Diante da situação, apanhado de surpresa, Marcondes folheou o abaixo-assinado e não teve outra alternativa senão concordar com a cabeça que havia sido atendido o seu pedido. O carroceiro estava em condições de pleitear sua candidatura a vereador pelo MDB. E como não era tão fácil conseguir candidatos a vereador para preencher a chapa do partido de oposição ao regime autoritário, dos dois mil eleitores conseguidos bem que algumas dezenas poderiam votar no Berfares…
Nem que fosse como voto de protesto, pensou Marcondes. Se no ano anterior os eleitores paulistanos votaram até no rinoceronte Cacareco e os cariocas no macaco Tião, como protesto, os eleitores joseenses poderiam escolher aquele carroceiro, protestando de forma mais eficiente a 15 de novembro. O Berfares, pelo menos, poderia tomar posse no cargo de vereador.
Com a confirmação da candidatura a vereador de Berfares Souza Oliveira, o fato passou a ser comentado na Câmara de Vereadores. A região de Santana do Paraíba e do Alto da Ponte, a região norte da cidade, era reduto de importantes lideranças políticas. Os vereadores Getúlio Orlando Veneziani e Sebastião Teodoro de Azevedo disputavam, pela ARENA, quem seria o mais votado. As apostas eram comentadas na coluna “Tome Nota” do jornal “O Valeparaibano” pelos jornalistas Aniz Mimessi e Joacyr Beça. Até uma nota em que se afirmava que o vereador Getúlio Orlando Veneziani apostava que não só teria mais votos como não acreditava na candidatura do carroceiro Berfares.
Os estudantes do Colégio Estadual Professora Maria Luiza Guimarães Medeiros, de Santana do Paraíba, onde também estudavam alunos da Vila Cristina (local onde residia Berfares) e do Alto da Ponte, tomaram aquilo como um desafio. E as estórias corriam… Diziam até que o Getúlio lançou um desafio: se Berfares fosse eleito ele deixaria que lhe colocassem arreio para que ele servisse de montaria! Como desmentir boatos?!
A campanha começou e os estudantes do “Maria Luiza” compareciam em todos os comícios para fazer a propaganda do seu candidato de protesto, o Berfares. E Marcondes inflamava com os seus discursos: “Se for do MDB pode votar até num poste que é melhor do que votar nos candidatos da ARENA! Pelo menos, ele não vai dizer amém ao Governo!”
O único detalhe é que o candidato só podia ser anunciado ao final do comício. Do contrário, os estudantes pegavam Berfares nas costas e saiam pelo meio do povo gritando o seu nome e não deixando mais ninguém falar. Até porque Berfares não era de falar. Quando anunciado, olhava o povo, acenava com a mão e dizia: “Saudações cibernéticas!” Uma palavra que ele ouvira Marcondes falar, achou bonita e incorporou no seu vocabulário de autêntico piraquara! E o resto era festa, nos braços dos estudantes do “Maria Luiza”. E não deu outra! Na apuração dos votos uma festa, com o povo carregando os eleitos nos braços e levando Berfares, o candidato a vereador mais votado nas eleições de 1967, até em frente da casa do vereador Getúlio Veneziani, no Alto da Ponte, com o arreio nas mãos, para que ele fosse selado e montado por Berfares. A polícia teve de ser acionada, mas Getúlio e seus familiares já estavam em outro local. E, afinal, era só parte de um protesto pacífico dos estudantes que acabou em festa pela eleição de Berfares!
Luiz Paulo Costa – Jornalista
O vereador piraquara
Berfares assumiu a Câmara de Vereadores pelo MDB e exerceu o seu mandato parlamentar por 4 anos. Levava as reivindicações que ouvia da população até a secretaria da Câmara, onde os funcionários transformam-nas em indicações, requerimentos e até projetos de lei. Era tido por alguns como um vereador simplório e até folclórico. Até mesmo por algumas tiradas. Como aquela, quando o prefeito Sobral quis aumentar o preço para o uso do banheiro da rodoviária urbana, que mereceu o seu protesto: “Pode aumentar o preço da cagada que dá mais despesas, mas da mijada não!”
Ao longo da história da cidade, no entanto, foi o mais autêntico representante de uma população que estava em fase de extinção nas margens do Paraíba: os piraquaras! Tanto que os seus constantes pronunciamentos da tribuna eram principalmente nos primeiros meses de difícil tradução pelos funcionários que transcreviam as atas legislativas. Depois, se acostumaram! Berfares, no entanto, era o único vereador da época que entendia os poucos piraquaras que ainda habitavam a região e viviam da pesca.
Tanto que em 1972, quando Berfares candidatou-se à reeleição, o ambiente não era mais simplesmente de protesto. Em São José dos Campos, e isto se repetiu em 1974 com a estrondosa vitória da oposição no País, o eleitorado já estava consciente de que votar no MDB era votar contra a ditadura e a favor de democracia, das liberdades democráticas. Berfares era o único que entendia a linguagem piraquara. E, portanto, era o único em condições de representá-los na Câmara Municipal. Quando eles conversavam era difícil de entender aquele verdadeiro dialeto, em que “peixe” virava “pitchi” e ia por aí adiante.
Entretanto, com poucos recursos, usando apenas um carimbo em cima de folhas de jornal, estava difícil chegar até o seu eleitorado. Foi aí que o MDB providenciou a impressão de vinte mil papeluchos com a inscrição: “Berfares: ame-o ou deixe-o!” O general Médici tinha lançado a campanha do “Brasil: ame-o ou deixe-o!”, na tentativa de incutir na cabeça da população brasileira que aqueles que não estivessem a favor do governo ditatorial estavam contra o País. O tiro saiu pela culatra a nível nacional! Em São José dos Campos foi pior: o próprio slogan do regime autoritário serviu para derrotá-lo através da reeleição de Berfares.
Em seu segundo mandato de vereador, um episódio evidenciou a fidelidade de Berfares ao MDB. O diretório do partido havia fechado questão contra a aprovação de um projeto de lei do Poder Executivo. A oposição tinha recuperado sua maioria na Câmara pela decretação pela Justiça Eleitoral da perda de mandato de dois vereadores do MDB por infidelidade partidária (até onde sei, os únicos casos ocorridos no País!). O Prefeito Sérgio Sobral de Oliveira e o assessor legislativo da Prefeitura, advogado Bráulio Novaes de Castro, conseguiram que o DEOPS (Departamento Estadual da Ordem Política e Social) intimasse o vereador Berfares para depor em São Paulo, no Largo General Osório, justamente no dia da sessão em que o projeto de lei seria apreciado.
Ele terminou o depoimento e foi liberado pelo DEOPS somente meia hora antes do início da sessão. E teria ainda que pegar o ônibus da “Pássaro Marron” na estação rodoviária. Era impossível chegar a tempo a São José! Mas não é que o comerciante Gaspare Jesus Demartini, passando pela rodoviária, vê o Berfares e lhe oferece uma carona. O projeto do Poder Executivo acabou rejeitado. O Berfares chegou a tempo para participar do processo de votação.
Final da história: Berfares representou a população joseense, especialmente os piraquaras, por duas legislaturas, mas não conseguiu um terceiro mandato. Embora permanecesse fiel às suas origens, os piraquaras haviam perdido a influência, porque muitos entraram para a construção civil e se mudaram das margens do Paraíba.
Luiz Paulo Costa – Jornalista
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