Cassiano Ricardo vive com a poesia em casa (1962)

Na confluência de Pacaembu, Sumaré e Perdizes está a casa de Cassiano Ricardo, o poeta que dificilmente algum repórter consegue convencer de que deve sair em fotografia, o poeta que também não gosta de dar entrevistas. Diz ele com voz pausada, calma, cordial:

Com a sua poesia, a casa de Cassiano Ricardo é moderníssima. Tem cenário paulista quatrocentão e um número alto, 2077.


– É uma violência para a minha modéstia, para meus hábitos singelos de “bicho de concha”. Sou profundamente caipira. Mas é também uma questão de índole; meu grande amigo Manuel Bandeira, ao que sei, já não pensa assim. A coisa de que mais gosta, sem nenhuma vaidade, é deixar-se fotografar. Já um outro homem ilustre, que conheci, Numa de Oliveira, sogro de meu outro grande amigo, Rodrigo Otávio Filho, chegava a quebrar a máquina fotográfica daquele que o surpreendesse com um “flash”. Não sou inimigo da fotografia; amo-a como arte; a fotografia em que haja composição, sensibilidade, como a praticada por Emily Chamie ou Benedito Duarte. Certas revistas ilustradas são, para mim, verdadeira festa ótica. Refletem muito bem “civilização da imagem”, como diria René Huygue, em seu Dialogue Avec le Visible.

É, portanto um trabalho árduo conseguir entrevista e fotos do poeta de “Montanha Russa”.
 Sus mulher, Jacy Gomide Ricardo, é também autora de vários livros de poesia, mas em linguagem saborosamente regional.

A casa 2077 revela a modernidade, ainda hoje, do líder “verde-amarelo” de 22. Uma estatueta de Brecheret, um quadro de Lasar Segall, outro de Guignard, e mais alguns de Di Cavalcanti, Ricardo Cipicchia, Menotti (que é também pintor) dão um ar de bom gosto ao interior da vivenda.

Cassiano Ricardo diz mais das coisas que detesta:

– Confesso-lhe outras ojerizas. Contar anedotas e vestir o fardão acadêmico são coisas que igualmente abomino. O dia mais “mortificante” (Cassiano grifou bem a palavra) de minha vida foi o da chamada “imortalidade”; o em que enverguei o fardão, na noite de minha posse, numdezembro terrivelmente carioca. Toda vez que o visto hoje só eu sei, sob os seus bordados, o sacrifício físico e moral que isso me custa. Quanto a anedotas, não sei contá-las nem as suporto, mas é preciso que se esclareça – refiro-me a quem quer fazer graça e a todo transe me obrigar a rir. Creio que Guilherme de Figueiredo, em seu “Tratado Geral dos Chatos”, catalogou bem esse tipo de “engraçado”. Já não gosto de me rir muito, talvez por superstição; mas o pior é rir sem vontade. Prefiro sorrir, diante da graça e da malícia que, manifestações do “humour” brasileiro, são o sal do espírito e até me fazem um grande bem. Mas isso é outra coisa.

Gosto de solidão, por exemplo. Pena é que não possa praticar – como queria Valery – verdadeiros “abusos” de silêncio. Sempre gostei muito de gatos e de papagaios. Tanto que figuram eles em vários poemas meus. De gato porque me dá o gosto de possuir uma coisa por outra. Se não possuo uma onça, possuo um gato que é, no verso de Rollinat, um “tigre en miniature”. A vida é isto: possuir-se sempre uma coisa por outra; uma pequena filosofia, uma forma de compensação… Já o papagaio tem, para mim, uma significação simbólica, que procurei identificar naquela pergunta:

Neste ambiente tranquilo vive um dos poetas mais revolucionários da literatura contemporânea: Cassiano Ricardo.


“Papagaio gaio, quem foi que te ensinou, por maldade, a palavra saudade?”

– Conhece o meu “Vamos Caçar Papagaios”? pergunta o poeta e explica:

– Nunca cheguei a caçar papagaios, no mato, mas na campanha modernista andei caçando os “papagaios” literários que viviam repetindo aqui tudo quanto se fazia na estranja. Fala a seguir de cães:

Como não hei de gostar? Responde-nos de pronto. Foi um cachorro que me salvou a vida, certa ocasião, num lugar do sul do país, onde morei. Lembro-me bem do que ocorreu. Um assaltante tentava, à noite, introduzir o cano de sua arma por um vão de parede, para me matar, quando o cão de guarda do meu vizinho se arremessou sobre ele, obrigando-o a sair em disparada pelo portão da frente. Sei que todo cachorro é grato ao seu dono; mas esse não era meu, sequer. Não tinha obrigação de me ser grato. Eu é que tenho, até hoje, de ser grato a ele e, por causa dele, a todos os cachorros.

Hábito doméstico mais do seu agrado:

– Em assunto de hábitos domésticos, o meu “fraco”, confesso-lhe, é uma rede de balanço. Coisa que me veio da infância. Morava eu na fazenda do meu pai e aprendi o costume de me balançar em rede. Por sinal que, por causa de balanço, se deu comigo um fato curioso: Vi que balanço não é coisa que se deva tirar de dentro de casa. Residia num bairro, então quase deserto, o Alto da Lapa (1931), e fiz armar meu balanço no terraço. Lá um dia, exausto de tanto trabalhar em serviços de minha repartição, procurei descansar no tal balanço. E eis que passa, veloz, pela rua em frente, um caminhão cheio de empregados da Light e um deles me exclama, em sua súbita passagem: vá trabalhar, vagabundo! Nunca eu havia trabalhado tanto, como disse. Mas nada se parece mais com o “não trabalhar” que o “descansar”… E as aparências é que governam o mundo, como já alguém observou”.

Amplas poltronas dão toque de conforto no número 2077. Mas Cassiano Ricardo confessa que tem saudades de uma certa rede de roça que embalou sua infância.


Aos dez anos já queria o poeta compor pequenas estrofes, embora com a insegurança própria da idade: “O meu primeiro poema, infantil desde o título, se chamava “Os Periquitos”. Afinal, não há nenhum mérito nem precocidade nessa ocorrência, pois a poesia, mesmo na idade adulta, não é “a infância que se encontra de novo”?

E continuando:

– Ser poeta, aliás, para mim era mal de família, já que meu tio, Manuel Ricardo, e minha mãe, Minervina Ricardo, também se davam à graça lírica, publicando seus poemas na imprensa loca – modesta imprensa do interior, na época. Hoje, se ainda sou poeta, é pelo que ainda resta, porventura, de “enfantillage” em mim. Minha criancice está, também, em brincar com os meus netos e ouvir um deles (de 5 anos) já dizer uma estrofe do “Martim Cerere”. Acho que Sartre tem razão quando, ao examinar as atuais dificuldades de conciliação entre os homens, diz: “Ils ont oublié leur propre enfance”.

Fala então de São José dos Campos:

“O “Martim Cererê” contém páginas que só consegui escrever com a marca de minha terra natal, como na parte do café, da vida pastoril, da banda de música etc.

A seguir, Cassiano Ricardo, conta algumas de suas maiores emoções:

Estava ele preso, com outros paulistas, na Sala da Capela, no Rio, quando ouviu nas vizinhanças, a declamação, pelo rádio, do seu poema “Piratininga”.

Em tal contexto de situação, confessou que sua emoção foi muito forte.

As salas são amplas, de grandes espaços, com muita luz e ventilação. A velha escada de caracol, com jeito de poesia antiga, não tem lugar na casa do poeta.

Cassiano morou algum tempo no Rio Grande do Sul; de regresso a São Paulo tomou parte ativa na campanha modernista, ocupou vários cargos importantes, foi um dos primeiros modernistas a entrar para a Academia, esteve comissionado em Paris, onde residiu durante dois anos e meio; foi diretor de “A Manhã”.

– Quer contar-nos alguma coisa sobre o que fez nesses setores de atividade?

– Terei muito o que contar, sem dúvida, diz o poeta, mas só o poderei fazer em minhas próximas memórias. Então se saberá muita coisa a respeito de fatos que presenciei, por exemplo, no Palácio dos Campos Elísios, como secretário do governador Pedro de Toledo. Possuo documentos inéditos sobre a revolução de 32, que então publicarei.

Em minhas Memórias explicarei também meu verdadeiro papel nas ocorrências da Academia, desde o prêmio a Cecília Meireles até à eleição de Getúlio e ao caso de Monteiro Lobato.

Sobre a Academia, declara:

– Entendo que ela não é só a “ilustre companhia” de que tanto se fala; é também uma escola de afeto. Tem ainda a virtude de um consolo no envelhecimento de cada um dos que a compõem. A gente envelhece dentro da Academia sem dar por isso; e não nota o envelhecimento dos colegas, pela continuidade do convívio. Todos envelhecem em comum; com a graça da naturalidade.

– Acha que a Academia tem cumprido seus objetivos?

– Quero crer que sim, e a prova está no Dicionário da língua e no Pequeno Vocabulário Ortográfico.

Em assunto de organização, tem ela lucrado muito com a presidência de Austregesilo de Athayde. Entretanto, a Academia deve, a meu ver, mudar-se para Brasília o quanto antes. E mudar também seu sistema de eleição, escolhendo, ela mesma, os seus membros, sem que estes precisem andar pedindo votos, de porta em porta.

Deve tomar certas iniciativas culturais, como a de propor ao Governo a criação de uma cadeira de Poética nas Faculdades de Filosofia e Letras (na Universidade de Brasília, notadamente) e a Instalação de uma cadeira de Língua Brasileira (linguagem diferencial, como diria João Ribeiro), nos ginásios. Mas a Academia, infelizmente, não cuida dessas coisas.

– Qual a sua participação do modernismo?

Cassiano Ricardo é um homem contra a fotografia.

– Fiz parte do movimento como dissidente, mas explico. A semana havia nascido, segundo informação de Mário de Andrade, nos salões de D. Olivia Guedes Penteado, ilustre dama paulista. Um grupo a que pertenci, o da “Anta”, nasceu mais modestamente num Café, o então Café Guarani, da Rua 15, em São Paulo. Ao social-mundano, aristocrático, salonista, opunhamos desde logo um “social”-ideológico ligado ao povo e à rua.

Outra razão da dissidência foi a necessidade combater certos “ismos”, como o futurismo italiano, o dadaismo francês, o expressionismo alemão, que alguns maiorais da semana estavam importando. Queríamos substituí-los por um 18mo” exclusivamente nosso, o “verdamarelismo”. Contra a cópia, a realidade brasileira em sua autenticidade indígena, americana.

E relembrando:

– Éramos cinco, os da “Anta”: Plínio Salkado, Menotti Del Picchia. Cândido Mota Filho, Raul Bopp e eu. Certo jornal da oposição nos chamou então os “cinco dedos da mão negra”. A páginas tantas da discussão, o próprio grupo cindiu-se: Plínio dizendo, a respeito de nossa origem, que havíamos bebido o leite da anta, Menotti retrucando que não e não. O leite que tínhamos bebido era o da loba latina.

– “Vocês estão bebendo não é leite de anta nem de loba; é leite do Tesouro” – aparteou-nos o jornal oposicionista. A espirituosa perfídia foi motivada por estarmos fazendo a campanha da “Anta” no “Correio Paulistano”, órgão do governo, ao tempo do PRP.

– Pode resumir as fases de sua poética?

– Passei, inicialmente respondeu-nos Cassiano Ricardo por uma espécie de lirismo desprevenido, sentimental, em “Dentro da Noite”; depois, pelo serviço militar obrigatório do soneto parnasiano, em “A Frauta de Pā”; depois pelo nacionalismo verde-amarelo de minha produção modernista, ainda polêmica, em “Vamos Caçar Papagaios”; depois, pela tentativa de um poema maior, bem brasileiro, em “Martim Cererê; depois me libertei de todas as influências anteriores para publicar “Um Dia Depois do Outro”, “A Face Perdida”, os “Poemas Murais”, representativos já de minha concepção atual de poesia. Depois passei para uma poesia mais preocupada com o homem no mundo de hoje, em “João Torto e a Fábula” e “O Arranha Céu de Vidro”. Agora, em “Montanha Russa” e “A Difícil Manhã”, suponho ter atingido uma outra fase, a da valorização da palavra, a de uma maior “invenção” e construção do “poema como poema”, participando dos novos experimentos, no domínio da poesia de vanguarda.

E sobre a poesia de hoje?

– Dou o meu inteiro apoio aos “novíssimos”. Eles é que estão exercendo agora o “direito à permanente pesquisa estética”, vinda de 22. Concretismo, neoconcretismo, “poema-praxis”, reformulam, sem dúvida, a poesia de hoje em sua fascinante problemática. Retomam o diálogo da Semana de Arte Moderna – semana que já dura 40 anos e não encerrou ainda seu ciclo histórico.

Cassiano Ricardo nasceu em 1895.

Filhos: Cassiano Ricardo Filho, casado com Laura de Podestá Ricardo; Célia Cecília Gianesella, casada com Luís Gianesella; Paulo Ricardo, casado com Maria de Souza Ricardo.

Netos: Tara, Jurandir, Jurema, Rubem, Regina-Célia, Brasil-Ricardo, Jaci.

Texto de Shajanan Lobo
Fotos de Roberto Solmo
Revista A Cigarra, 1962



Traga sua história para ser contada!
Digitalização de fotos, vídeos, áudio, documentos, recortes de jornais, gravação de depoimentos, cartas, etc.
Midias Sociais: sjcantigamente
Whatsapp: (12) 99222-2255
Email: sjcantigamente@gmail.com

Comente se há informações extras, escreva suas recordações ou mesmo o que achou desta publicação. Agradeço por sua participação!