Índios e brancos no município de São José dos Campos (década de 1940)

O conteúdo que vocês terão acesso agora, me foi enviado por Francisco Dias de Andrade, pesquisador do Museu do Ipiranga, em São Paulo. Ele consiste em um estudo da década de 1940 relacionado a ocupação indígena em nosso município. Diante o burburinho causado pelo sítio arqueológico do Bairro Jd. Mariana I, devemos manter o assunto em alta para quem sabe descobrir outros mais, e até mesmo dar continuidade a este da presente matéria.

Em meados de 1946, por intermédio do meu amigo dr. João Amoroso Netto, fui convidado para integrar uma comissão constituída pela Prefeitura Municipal de São José dos Campos, a fim de reconstituir a história do município, sendo a minha colaboração limitada exclusivamente ao estudo das antiguidades relacionadas com a existência de índios no seu território, o qual eu já havia visitado outras vezes, desde 1938 até 1941, investigando problemas geológicos. Em duas semanas de permanência em São José dos Campos, consegui localizar e explorar vários lugares, nos quais apareciam vestígios que bem evidenciavam terem servido tais locais para moradia de índios. Esses dados, depois do meu regresso a São Paulo, foram ampliados com as investigações procedidas ali pelo dr. Amoroso Netto, ao tempo delegado de polícia do município.

A história do Vale do Paraíba e as tradições verbais ainda hoje vivas, assim como a toponomástica, permitem estabelecer que toda aquela região fora densamente povoada por índios, em contacto diário com os invasores brancos. Não pretendo, no campo deste estudo, entrar nas relações entre os dois grupos raciais. Limito-me a consignar aqui, tão somente, alguns dos lugares nos quais os índios viviam e que pudemos visitar. É inegável, no entanto, que lugares como esses, em que habitaram os índios da região, devem ser muito mais numerosos que os assinalados no mapa por nós levantado e que acompanha estas notas, de acordo com inquéritos verbais levados a cabo durante o nosso trabalho.

No decorrer da nossa expedição, deparamos também um estranho monumento, que é razão principal destas notas; é tão singular, que acho oportuno indicá-lo aos historiadores e etnólogos, a fim de chamar a atenção para esta categoria de construções. Talvez a sua origem e finalidade possam ser explicadas após novas descobertas. Os lugares que o dr. Amoroso Netto e eu, juntos ou separadamente, conseguimos identificar, estão indicados no mapa com letras em círculos.


Fazenda Serimbura – (a) – Pouco antes da curva da estrada de rodagem que contorna um edifício de pasteurização de leite, no seu lado direito, localiza-se a fazenda Serimbura. Em outros tempos, foi achada ali uma igaçaba de invulgar tamanho, descrita por todos que a viram como tendo 1,80 m. de altura e paredes muito espessas. Recentemente, acharam-se outros fragmentos, entre os quais bom pedaço de um prato de forma retangular, com lindo desenho em preto e vermelho, de tipo muito comum, bem representado na coleção do Departamento de Etnologia da Faculdade de Filosofia. Abri, nesse lugar, seis trincheiras, verificando a existência de muitos pedaços de barro cozido, destroços de vasilhame índio. Numerosos outros achavam-se espalhados no planalto da fazenda, destinado a pasto e, em consequência disso, grandemente fragmentados. Não há dúvida que ali devia ter existido uma moradia de tamanho considerável.

Abaixo vista aérea da localidade em questão e aproximação da Vigor Laticínio na década de 1930.


Bairro de Tatetuba – (b) – No quilómetro 121 da estrada de rodagem São Paulo-Rio, à direita, achamos uma igaçaba do tipo espatulado, alta, de talvez 80 centímetros, com fragmentos de ossos humanos. Por muitos anos ela fora guardada intacta, em um barracão da fazenda; todavia, poucos dias antes da nossa chegada, haviam-na jogado ao relento, tendo-se despedaçado. Conseguimos ainda recolher os pedaços restantes, que foram depositados na Prefeitura local. O inquérito não revelou a existência de outros achados nos arredores.

Bairro do Cajurú – (c) – Este lugar foi explorado por Amoroso Netto, depois do meu regresso a esta Capital. No barranco à direita da estrada, encontrou ele abundante material fragmentado, no meio da terra e à flor do solo. Conviria proceder-se ali a uma escavação sistemática.

Bairro da Pernambucana – (f) – Também explorado por Amoroso Netto. No lugar denominado Santa Cruz da Panela, ele foi informado do achado de uma grande igaçaba, com ossos, e desaparecida há tempos.

Deixei por último os lugares designados no mapa por – b — e – c, porque talvez exista alguma relação entre eles, pois estão em pontos muito próximos um do outro. A região é de suaves colinas arredondadas, atualmente transformada em pastos, de maneira que o solo pode ser examinado com relativa facilidade. Na Fazenda «Ricardo», no bairro Jardim, existe uma pequena lagoa, nascente do Rio Comprido, o qual neste lugar serve de limite entre os municípios de São José dos Campos e Jacareí. Próximo à lagoa, num pequeno vale, me foi indicado o lugar onde, há muitos anos, tinham sido achados vinte e oito objetos de pedra trabalhada, isto é, machados, mãos-de-pilão, etc… Um trabalhador da fazenda me informou ter encontrado, poucos dias antes, um machado (pedra de raio), que jogara no pasto, por ter ouvido dizer que aquilo dava azar. O fazendeiro por sua vez me disse haver achado um copo de barro cozido, que julgara ser índio, o que é muito plausível, mas que infelizmente se extraviara.

No lugar indicado como o do achado dos objetos acima referidos, todas as sondagens foram infrutíferas: só encontramos seixos brutos. A notícia que então me deram acrescentava que os objetos tinham sido levados para vários pontos e que a maior parte deles estava em poder do sr. A. W. Tibiriçá. Conversando com esse senhor em São Sebastião, ele nos informou que tais objetos de pedra procediam de vários lugares e não só do bairro Jardim, e que os mesmos haviam sido entregues ao seu irmão, Rui W. Tibiriçá, o qual, quando exercia as funções de técnico no Departamento de Geopaleontologia da Faculdade de Filosofia, sob a minha direção, os depositara numa de suas salas. Até 12 de setembro de 1942, eu os vi ali. Depois dessa data, não mais tive notícias a seu respeito, em consequência da proibição que me foi imposta de voltar àquele Departamento, por razões já bastante conhecidas e que tiveram sua origem na falsa denúncia contra mim apresentada pelos meus assistentes. Não sei que fim levaram esses objetos, que constituíam, efetivamente, um núcleo bastante variado e interessante. Possuo um desses machados, que me foi presenteado pelo mesmo sr. Rui. É de forma gigantesca e tem um cabo de construção curiosa e recente (fig. n° 1).


Num vale próximo ao já mencionado da lagoa do Rio Comprido, acha-se o lugar que os moradores chamam de «Morro das índias», no qual se ergue o singular monumento representado na fotografia (fig. 3). Esta foi tirada depois de ter sido cuidadosamente limpado o solo de toda a vegetação rasteira e do pasto que mascarava a morfologia da curiosa trincheira. Dimensões, topografia e aspecto são claramente visíveis na fotografia. A muralha do perímetro é de terra, ali acumulada, evidentemente, com cestos ou objetos semelhantes: repare-se que não há vestígio algum de escavação, dentro ou fora do quadrilátero, que represente fossos de empréstimo. Os níveis das superfícies topográficas, externas e internas, são contínuos. Por isso, chega-se à conclusão de que a terra foi tirada à flor do solo, sem a abertura de fossos e utilizando-se só a camada artificial, talvez porque mais fofa. Se existisse vegetação, como é provável, teria sido muito exaustivo abrir fossos para remover o apreciável volume de terra necessária à construção da trincheira.

Cortei a muralha em vários lugares, para examinar sua estrutura, e os cortes nada revelaram: é interessante notar que não havia carvões misturados com terra, nem na muralha nem no solo interno do quadrilátero, onde também abri algumas trincheiras. Assim, deve admitir-se que a construção não foi precedida da queimada de qualquer floresta.

A altura da muralha atual não chega a 80cm Mas o dr. Capobianco, advogado residente em São José dos Campos, informou-me que, há muitos anos atrás, seu pai, que visitava frequentemente o lugar, notara que sua altura equivalia à de um cavalo (1,80m?) e era revestida de mata. Efetivamente, há vestígios de árvores cortadas e parece que o corte foi efetuado recentemente, a fim de preparar o pasto.


Por estes elementos podemos concluir que a muralha do quadrilátero foi construída com terra da superfície do solo, num lugar que não estava coberto por floresta e que não fora preparado com uma queimada.

O volume da terra transportada (maior que o volume atual, porque houve e há uma progressiva diminuição da sua altura, por causa da erosão atmosférica), demonstra ter sido um trabalho de vulto, levado a cabo por uma multidão de homens (talvez 280 dias de trabalho individual), mas o conjunto, dada a ausência de qualquer sinal de objetos humanos, índios ou brancos, dentro ou fora da trincheira, parece demonstrar que a obra, desde o início, fora construída a título provisório e não definitivo.

Examinemos as várias hipóteses possíveis sobre a natureza dessa construção.

Fortificação índia – À primeira vista, esta hipótese é a mais sedutora; mas convém abandoná-la desde logo, porque a posição topográfica a torna absurda. De fato, o lado inferior, à direita, e o superior, à esquerda (encarado o quadrilátero da parte baixa do vale), apoiam-se em dois pequenos morros, do alto dos quais lançamos pedras que, com facilidade, atingiram o meio do campo. Arqueiros ou arcabuzeiros postados nos dois morros, podiam varrer o campo à vontade. De outro lado, não há vestígios das paliçadas usuais nos campos índios e que constituíam, praticamente, o principal meio de defesa das aldeias indígenas.

Curral – Esta hipótese também se pode excluir, porque o trabalho não compensaria o objetivo. E além disso, mesmo que o muro tivesse mais de dois metros de altura, qualquer animal doméstico poderia facilmente sair, subindo pelos declives internos.

Uma das página do livro onde foi retirado o artigo que você lê.


Tanque para água – Sendo o recinto fechado também no seu lado superior, deve ser excluída esta suposição. Além disso, teria sido suficiente, para esse fim, construir uma só barragem entre os dois morros inferiores.

Fortificação de brancos – Hipótese que deve ser abolida pelas mesmas razões estratégicas expostas com referência à fortificação índia. Os assaltantes, índios ou brancos, teriam podido sempre varrer todo o campo, a flecha ou bala. Nem se pode pensar pudesse tratar-se de uma fortificação provisória, feita às pressas, pois o volume de terra transportada indica um grande número de trabalhadores, e, por isso, de ferramentas e cestas necessárias ao trabalho. Nenhuma bandeira ou bando de brancos poderia dispor normalmente de tal aparelhamento.

Por todas estas razões, devo declarar que, por enquanto, não posso dar qualquer explicação a esta estranha construção, e a minha perplexidade aumenta, se considerarmos que a poucos passos do muro da esquerda (olhando do lado inferior), há um grande buraco, aliás pouco profundo, que parece uma tentativa para procurar água ou abrigar-se alguém na encosta do morro. Não era um lugar de defesa, porque estaria ainda mais exposto aos ataques vindos do morro próximo, do que o próprio campo.

Não considerei o caso de tratar-se de um terreno para beneficiamento de cereais ou café, especialmente porque, pela forte inclinação do quadrilátero interno, as águas pluviais se teriam estagnado até a metade do campo, danificando a safra. Além disso, a superfície do quadrilátero é tal, que indicaria uma safra gigantesca, fosse qual fosse a cultura, da qual, aliás, não há notícia no lugar.

Os meus colegas estão convidados a resolver o problema, o que talvez seja possível, com novos achados e investigações.

Aproveito a oportunidade para apresentar outro misterioso objeto que há diversos anos atrás recebi de presente do engenheiro Boris Krakolewski. Trata-se de uma concha de cobre ou bronze (o metal não foi analisado), achada em Guaratinguetá, nos trabalhos de abertura de uma galeria para a extração de xisto betuminoso. Num barranco de terra vermelha, achava-se um bolsão de terra mais fofa, com numerosos fragmentos de cerâmica índia pintada, mas tão embebida de água e por ela danificada, que não foi possível salvá-los. Havia, também, uma pedra redonda, com visíveis vestígios, em um dos lados, de ter sido utilizada como percursor.


A concha fotografada (fig. n. 2) mostra claramente que de um lado devia ter contido uma asa ou cabo, porque ainda são visíveis os furos distribuídos geometricamente, em fileiras de 6 por 4.

Não posso adiantar nada sobre a origem desse objeto, que pode ser de construção branca, importado pelos invasores, ou índia, mas, neste caso, da região dos Andes, lá onde florescia a cultura dos Incas que trabalhavam o cobre.

Barão Otorino de Fiore de Cropani (Professor catedrático das Universidades de Catania, Itália e São Paulo)

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Wagner Ribeiro – São José dos Campos Antigamente

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